terça-feira, 27 de abril de 2010

O Livro do Desassossego por Bernardo Soares.




Quero que a leitura deste livro vos deixe a impressão de terdes atravessado um pesadelo voluptuoso.

……

A melhor maneira de começar a sonhar é mediante livros. Os romances servem de muito para o principiante. Aprender a entregar-se totalmente à leitura, a viver absolutamente com as personagens de um romance - eis o 1º passo. Que a n[ossa] família e as suas imagens nos pareçam chilras e ingratas ao lado dessas, eis o sinal do progresso.

É preciso evitar o ler romances literários onde a atenção seja desviada para a forma do romance. (...) Não tenho vergonha em confessar que assim comecei. É curioso mas os romances policiais, os (...) [...].

Nunca pude ler romances amorosos detidamente. Mas isto é uma questão pessoal, por não ter feitio de amoroso, nem mesmo em sonhos. Cada qual cultive, porém, o feitio que tiver. Reconheceremos sempre de que sonhar é procurarmo-nos. O sensual deverá, para suas leituras, escolher as opostas às que forem minhas.

Quando a sensação física chegar, pode dizer-se que o sonhador passou além do 1º grau do sonho. Isto é, q[uando] um romance sobre combates, fugas, batalhas, nos deixa o corpo realmente moído, as pernas cansadas... o 1º grau está conseguido. No caso do sensual, deverá ele - sem receber a mensagem mais que mental[mente] - ter uma ejaculação q[uan]do um momento desses chegar no romance.

Depois procurará traduzir tudo isso para mental. A ejaculação, no caso do sensual (que escolho para exemplo, porque é o mais violento e frisante) deverá ser sentida sem se ter dado. O cansaço será m[ui]to maior, mas o prazer é completamente mais intenso.

No 3º grau passa toda a sensação a ser mental. Custa o prazer e custa o cansaço, mas o corpo já nada sente, e em vez dos membros lassos, a inteligência, a vontade [?], ou a emoção é que ficam bambas-frouxas... Quando aqui é tempo de passar para o grau supremo do sonho.

O supremo grau é o construir romances para si próprio. Só deve tentar-se isto q[uan]do se está perfeitamente mentalizado o sonho, como antes disse. Se não, o esforço inicial em criar os romances, perturbará a perfeita mentalização do gozo.

[…]

O mais alto grau do sonho é q[uan]do criado um quadro com personagens, vivemos todas elas ao mesmo tempo - somos todas essas almas conjunta e interactívamente.

É visível o grau de despersonalização e de encinzamento[?] do espírito a que isto leva, e é difícil confesso, fugir a um cansaço geral de todo o ser ao fazê-lo... Mas o triunfo é tal!



1914?

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