terça-feira, 10 de agosto de 2010

Teatro e Literatura



"O teatro não vive nas palavras... ele vive no espaço."

Venho pensando nessa frase há algum tempo e em sua praticidade no processo de construção deste projeto. Tenho lúcida compreensão de que toda forma escrita dramatúrgica não é mais que uma forma morta; Um epitáfio do autor revivida eternamente por aqueles que a lêem. Alguns textos ainda tendem a ser "formas prontas", independentes da cena representável para que se possa chegar a sua compreensão. São de certo modo literatura. Basta ler e se tem a compreensão do todo.

Então, que texto encenar no teatro?

De certa forma, isso me motivou a debruçar os olhos, alguns anos atrás, sobre o texto "Na Floresta do Alheamento", escrito pelo heterônimo Bernardo Soares, de Fernando Pessoa.
A necessidade de se representar esse texto na cena também é nula. Representá-lo seria, de certo modo, matar a poesia nele existente, já que trata de temas carregados de uma extrema subjetividade. Logo, a compreensão não acontece em uma leitura. Sentidos outros afloram à cada novo investigar do texto, sendo impossível encontrar algo palpável e até mesmo representável.

O que tem esse texto?

A escrita não acontece como articulação de ideias racionais, mas sim sensórias e ligadas a paisagem que circunda o eu-narrador (se é que existe um), de modo a criar imagens a partir do que ele/ela fala; a partir de suas próprias impressões sobre as coisas que o circundam. Assim temos uma ideia de uma "Floresta estranha" descrita em partes e carregada de experiências passadas ou até mesmo imaginadas por aquele que fala.

Quem sente o quê?

Toda sensação é algo particular e é sentida unicamente por termos um corpo. O ato de VER nos é particular. O que vemos (e da forma que vemos) é impossivel a outro se não nós mesmos. Eu vejo aquilo que quero ou que consigo. O outro também. Compartilhar exatamente o mesmo ponto de vista é impossível, já que temos um corpo que nos restringe. O outro ocupa um lugar em que eu não posso estar.

Então, o que é isso tudo?

Definições são complicadas, principalmente ligadas a figura de Fernando Pessoa. Seria o mesmo que perguntar: quem foi Fernando Pessoa?
Ele, poeta-múltiplo, fragmentou sua persona para sentir-se "muitos", e com isso tentar compeender melhor a realidade do mundo. Sob a ótica de vários pontos de vista, ele cria os Heterônimos, seres ficcionais que percebem o mundo de formas completamente diferentes. Mergulhando na metafísica e nos mistérios universais, Pessoa pode como ninguém deixar-se completar, permanecendo ele próprio, Fernando pessoa, uma esfinge.
Talvez a consciência do movimento simultâneo das coisas, todas a todo tempo, tenha servido de inspiração para que o poeta, em dado momento, concebesse esse texto como forma de testar os limites de suas percepções. O perceber de todas as coisas a cada momento é impossível. O coração dessa floresta de alheamento é BRANCO como um foco de luz, e ao nos aproximarmos dele, mais intensa e direta a luz fica, tornando-se "incontemplável". Olhos que reagem ofegantes ao contemplar essa Luz que de tão forte os cega. Neste caso a distancia é pertinente, de modo a perceber a superficie dessa paisagem, ao invés de abarcá-la ou mesmo tentar definir o que ela é realmente (verdade ou ilusão).
A floresta nunca é única, mas é sempre a mesma. Isso porque ela está lá na medida daquele que a observa. Na montagem de ALHEAMENTO, o texto não está realmente lá, apesar de ser dito "na íntegra". O que está são palavras dotadas de uma ausência. Palavras que "vivem no espaço" no momento e na forma com que são ditas. Neste sentido, estas palavras não são mais palavras, são "sons" percebidos na fisicalidade sonora (ouvidos) e que depois ganham o cognitivo (cérebro).
Não se é mais possível enxergar as laudas de papel em que foram impressas as palavras. O que se percebe agora são as sonoridades que elas produzem, vibrações do próprio corpo que ganham outros corpos em uma comunicação que ocorre "na linguagem" e não "pela linguagem". Essa linguagem carrega significados próprios dela e do momento em que ela acontece. Desse modo, as palavras ganham outro "status", nem mais nem menos importante do que a forma textual escrita e encerrada num papel, mas "outras". Elas ganham voz a partir do corpo e do espaço.

E como a palavra resiste a essa passagem do texto a voz sem perder sua essência (se é que isso existe)?

Penso que é isso justamente que difere as GRANDES das pequenas obras. Algumas foram feitas apenas para serem lidas, outras apenas para serem faladas, ou interpretadas, ou cantadas, o que for. Porém,  algumas obras suportam as mudanças em sua forma ou linguagem, permanecendo com esse "algo Interno" (essência?) que faz com que elas sejam o que são, não importando o meio ou linguagem em que estão inseridas.
Para o dramaturgo Heiner Müller, os textos deveriam ser como pedras que ao serem lançadas a única mudança seria a do mover da poeira em sua superfície. Talvez, as que mais se aproximam do texto de Pessoa sejam as considerações de Artaud quando fala em palavras como emanações sensíveis, e não somente por seus sentidos racionais. Isso nos liberta ainda mais do zelo aos grandes ícones, e do séquito de guardadores sacramentais dessas grandes obras, como se elas fossem tão frágeis que realmente precisassem disso para sobreviver.

Raphael Vianna.

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